Flowers
Flowers

Conteúdo

Content

Voltar

ARTIGOS

A questão da divisão de centrais geradoras de energia solar em micro e minigeração: reflexões a partir do caso AM Torres Ltda.

O texto e a sua proibição são claros. Porém, aquilo que se considera critério ou não de aferição da divisão irregular continua uma lacuna no sistema. Uma lacuna que atualmente se vê preenchida pela opinião e juízos de valor daqueles analisam os respectivos casos

28 DE DEZEMBRO DE 2023, ÀS 10H TEMPO DE LEITURA: 10 MINUTOS

Bianca Bez, Advogada no BBL Advogados

A análise do pedido de medida cautelar discutido durante a 42ª Reunião Pública Ordinária da Diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) tem sido um tópico de grande interesse. E a razão para tanto desemboca no principal assunto adjacente ao caso protocolado pela AM Torres Ltda.: a divisão de centrais geradoras de energia solar com o (suposto) intuito de enquadramento em usinas de menor porte. Porém, o que está em jogo, aqui, vai muito além do caso concreto – é possível estarmos diante do estabelecimento de critérios e de parâmetros objetos para se e quando uma divisão de centrais geradoras poderá ser taxada de irregular?

Para gerir as expectativas, o objetivo do presente artigo é analisar com muita profundidade o referido caso e dele tentar extrair o possível caminho a ser tomado pela ANEEL em seu julgamento e os critérios até o momento utilizados como justificativa para um ou outro caminho. Em outros termos, a ideia deste texto é situá-lo a respeito de quais fatores estão sendo utilizados para uma tomada de decisão sobre o que pode ser utilizado para apontar a possível existência de uma divisão irregular de centrais geradoras como microgeração ou minigeração distribuída e quais elementos não estão sendo considerados relevantes ou razoáveis.

No caso em comento, a ENEL/RJ cancelou oito orçamentos de conexão alegando que as solicitações de José Luiz Pires, Vinicius Oliveira de Araujo, Agustinho Amancio da Silva Filho e Fábio Oliveira Moulin se enquadravam na proibição de divisão de centrais geradoras em unidades menores, conforme previsto no artigo 11, parágrafo 2º, da Lei 14.300/2022.

Entre os argumentos trazidos pela AM Torres Energia na sua petição, cujo pedido final foi a concessão de medida cautelar para reconhecimento da “nulidade dos cancelamentos de seus orçamentos de conexão”, destacam-se os seguintes: i) José, Vinicius, Amancio e Fábio são apresentados como pessoas físicas independentes, operando pequenos negócios e investindo recursos próprios em projetos de geração solar compartilhada; ii) eles não possuiriam vínculos jurídicos entre si e teriam como objetivo desenvolver projetos de geração solar compartilhada para pequenos consumidores – a intenção, portanto, não seria vender a energia produzida no Ambiente de Contratação Livre (ACL); iii) a ideia, com os projetos, seria gerar uma fonte de renda passiva ou extra para complementar as aposentadorias dos interessados, indicando um aspecto de sustentabilidade financeira pessoal; iv) os empreendimentos propostos estariam alinhados com a finalidade da Lei 14.300/2022, pois visariam facilitar o acesso de consumidores de pequeno porte ao Sistema de Compensação de Energia Elétrica (SCEE), sem desvirtuar os objetivos da legislação; v) acusam a ENEL/RJ de abuso de poder econômico e de criar obstáculos para pequenos consumidores acessarem o SCEE; vi) discorrem que existe risco de dano irreparável e perda de enquadramento como GD I; vii) afirmam que a existência de um representante comum para todos os solicitantes não é motivo suficiente para apontar a configuração de subdivisão irregular de usinas; e viii) cada solicitante possuiria apenas duas unidades geradoras, as quais poderiam estar divididas em diferentes formatos – cinco usinas de 1MW, cinquenta de 100kW, duas de 2,5MW – e, ainda assim, seriam enquadradas como minigeração.

Ao proferir seu voto, o Diretor Relator Fernando Luiz Mosna Ferreira da Silva decidiu por conhecer e, no mérito, dar provimento ao pedido de medida cautelar para suspender os cancelamentos dos orçamentos de conexão emitidos pela Enel/RJ, até o julgamento definitivo do pedido de anulação. Basicamente, entendeu o relator que, sem critérios objetivos definidos pela norma ou pela regulação, é necessário avaliar as particularidades de cada caso para determinar a existência de divisão de usinas.

Ainda para o relator, o cerne da discussão posta no procedimento residiria “no fato de as centrais geradoras, considerando mais de um solicitante em conjunto, ultrapassarem o limite de 5MW” – no entanto, para ele, “mesmo que os projetos estejam localidades em áreas contíguas, seja no mesmo município ou em município distinto, esse fato, avaliado de forma individual, não caracteriza a tentativa de divisão”. Portanto, no seu entender, não existindo critério objetivo que estabeleça “o que é a divisão vedada, não se pode fazer presunção absoluta de que no caso estaria sendo fracionado”.

Acerca dos requisitos relativos à concessão da medida cautelar – perigo de dano e probabilidade do direito -, ressaltou o diretor relator que a “não concessão da medida cautelar resultará na não construção das centrais geradoras e, consequentemente, adiará o usufruto dos benefícios advindos da injeção de energia pelos projetos”.

Durante a mencionada 42ª Reunião Pública da Diretoria da ANEEL, aberto o debate aos demais diretores, o Diretor Sandoval de Araújo Feitosa Neto discordou do voto proferido pelo relator, destacando que existiria, sim, critério objetivo, pois, no caso em análise, haveria 20MW a serem injetados no mesmo lugar – “então, sob o ponto de vista físico, da engenharia, não há porque não considerar um único empreendimento. É um único empreendimento de forma inequívoca”. Para o referido diretor, a avaliação deve ser restritiva e não ampliativa, ou seja, na dúvida não se deve conceder o “benefício”. E, ainda, pontuou que as “áreas são totalmente contíguas e se conectam em um único ponto”.

Nesse momento, o Diretor Hélvio Neves Guerra discordou do Diretor Sandoval, afirmando que o fato de as usinas se conectarem no mesmo ponto não deve ser um critério de aferição da divisão ou não do empreendimento. Em seguida, o Diretor Relator Fernando apontou que a questão da contiguidade das áreas e da conexão foram pontos debatidos e considerados não robustos à época da discussão da Nota Técnica n. 2/2023-SRD/SGT/SRM/SRG/SCG/SMA/SPE/ANEEL, que tratou da análise das contribuições recebidas no âmbito da Consulta Pública n. 051/2022 e aprimoramento das regras aplicáveis à micro e minigeração. O debate, na sequência, enveredou para a presença ou não do requisito do perigo de dano, sobretudo se efetivamente existente até a decisão de mérito. Ao fim, a Diretora Agnes pediu vista dos autos.

Em seu voto, a Diretora Agnes divergiu do diretor relator para indeferir o pedido de medida cautelar. Para ela, não estaria presente a probabilidade do direito como requisito para concessão da liminar pleiteada. Além de destacar elementos fáticos, como a contiguidade da área em que serão potencialmente instaladas as usinas fotovoltaicas, a unicidade na representação dos orçamentos de conexão, o ingresso dos pedidos no mesmo dia, a forma pela qual foram firmados os contratos de arrendamento e a mesma potência a ser instalada, a Diretora Agnes Maria de Aragão da Costa focou na afirmação de que os procedimentos adotados pela distribuidora, ao menos em análise perfunctória, estariam em conformidade com a atual regulação. A Enel/RJ teria, apenas, cumprido “com a obrigação que lhe foi imputada pela regulamentação vigente”.

Incluído o feito em pauta na 45ª Reunião Pública Ordinária da ANEEL, a Diretora Agnes apresentou seu voto divergente e, durante os debates, o Diretor Relator Fernando trouxe à tona o atual acórdão do Tribunal de Contas da União n. 2353/2023 (que trataremos em um outro momento), para apontar que deve a ANEEL, mesmo em sede de geração distribuída, analisar a matéria acerca dos requisitos para a configuração, ou não, de divisão irregular. Em seguida, o diretor relator ainda frisou e discordou sobre a inexistência da probabilidade do direito, mencionando, inclusive, que, se fora delegada a análise das divisões irregulares às distribuidoras, poderia muito bem a ANEEL reaver essa atribuição e examinar o caso em sede de liminar.

Por sua vez, o Diretor Sandoval manteve sua posição contrária à do relator e concordou com o voto divergente da Diretora Agnes, discorrendo ainda que, para ele, há clara tentativa de divisão irregular. Em votação, prevaleceu a posição do diretor relator e, assim, os cancelamentos dos orçamentos de conexão foram suspensos até o julgamento do mérito.

Observando a regulamentação vigente, percebe-se que, de fato, a ANEEL concedeu às distribuidoras a análise dos casos concretos e, sem prever quais critérios ou parâmetros seriam de maior ou menor importância, deu a elas a prerrogativa de dizer quando se considerará eventual divisão de usinas uma conduta irregular. Certamente, tal fato não significa que, demandada, não pode a ANEEL analisar casos concretos e divergir das distribuidoras.

Tanto a Lei n. 14.300/2022, em seu parágrafo 2º do artigo 11, quanto a Resolução n. 1.059/2023, no seu artigo 655-E, preveem que é vedada a divisão de central geradora em unidades de menor porte para se enquadrar nos limites de potência instalada da micro ou minigeração distribuída. Já o parágrafo 1º deste último artigo dispôs que a “a distribuidora é responsável por identificar casos de divisão de central geradora […], podendo solicitar informações adicionais para verificação” e, caso constatada a irregularidade, poderá não emitir ou cancelar o orçamento de conexão.

O texto e a sua proibição são claros. Porém, aquilo que se considera critério ou não de aferição da divisão irregular continua uma lacuna no sistema. Uma lacuna que atualmente se vê preenchida pela opinião e juízos de valor daqueles analisam os respectivos casos. Ora a contiguidade das áreas importa, ora não. Ora a mesma titularidade dos empreendimentos é algo relevante, ora não. Ora a existência ou não de vínculo jurídico entre partes solicitantes de orçamento de conexão é algo pertinente, ora não. Tudo, atualmente, depende de quem realiza a análise.

E nada poderia ser pior que isso. Sem critérios claros, os agentes econômicos (investidores, desenvolvedores de projetos, consumidores) enfrentam incertezas significativas sobre a legalidade de suas operações. Isso pode levar a hesitações nos investimentos, retardando o desenvolvimento de novos projetos e afetando negativamente o mercado de energia renovável.

Ainda, a falta de parâmetros claros pode aumentar os custos de transação, pois as partes envolvidas podem necessitar de consultas jurídicas adicionais, avaliações técnicas e possivelmente litígios para determinar se uma configuração específica de projeto está em conformidade com a lei. Ao deixar a responsabilidade de identificar divisões irregulares exclusivamente nas mãos das distribuidoras sem diretrizes claras, abre-se espaço para a discricionariedade, o que pode levar a decisões inconsistentes entre as diversas distribuidoras e potencialmente arbitrárias, prejudicando a confiança no sistema regulatório.

Voltando-se ao caso em comento, percebe-se que o caminho ainda é longo para se prever critérios objetivos acerca da divisão de centrais geradoras em mini ou microgeração. Porém, espera-se que a chegada desta demanda à ANEEL sirva como exemplo de que pior do que deixar de fixar parâmetros por não os considerar robustos é estabelecer critério nenhum. A falta de critérios claros pode resultar em desafios tanto para as distribuidoras na implementação da regra quanto para os produtores de energia na conformidade, levando a interpretações divergentes e potencialmente a disputas legais.

Ao final, o caso da AM Torres Ltda. evidencia uma questão crucial no âmbito regulatório das energias renováveis no Brasil: a necessidade premente de critérios objetivos para a classificação de divisões irregulares de centrais geradoras. A decisão da ANEEL de suspender os cancelamentos dos orçamentos de conexão, apesar da controvérsia e da divergência de opiniões entre seus diretores, reflete a complexidade e a ambiguidade que permeiam a regulamentação atual. Este cenário, onde a interpretação subjetiva predomina, não só gera insegurança jurídica, mas também estagna o progresso, inibe investimentos e fomenta disputas legais. A discussão levantada por este caso é emblemática e deve servir como um catalisador para uma mudança regulatória mais ampla, onde a transparência e a previsibilidade devem ser as bússolas que guiam as respectivas decisões.

Bianca Bez é advogada com ênfase em resolução de disputas, negociação e Direito das Energias no BBL Advogados

Fonte: Canal Energia