RETROSPECTIVA 2022
1 de janeiro de 2023, 14h32
Por Eduardo Bruzzi e Aylton Gonçalves
Notas introdutórias
O ano de 2022 deu sequência à revolução na normatização do mercado financeiro, que tem ocorrido nos últimos anos. Essa revolução é, do ponto de vista institucional, materializada por meio da Agenda BC#, a qual tem como pilares a inclusão financeira, a competitividade, a transparência, a educação e a sustentabilidade.
Neste texto, sem a intenção de abarcar todas as normas, apontamos algumas das mais relevantes alterações normativas realizadas, pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e pelo Banco Central do Brasil (BCB), no âmbito: (1) do Pix; (2) do open finance; (3) do mercado de câmbio; (4) do registro e da gestão de recebíveis; (5) da regulação prudencial de instituições de pagamento; e (6) dos processos de autorização.
Pix
A primeira norma de 2022 que consideramos importante para destaque é a que tratou do bloqueio de transações realizadas por meio do arranjo de pagamento Pix.
Em nova norma, que alterou o Regulamento Pix, o BCB determinou que uma transação deverá ser rejeitada pelo participante provedor de conta transacional do usuário pagador, por exemplo, quando: (1) houver problemas na autenticação do usuário pagador; (2) envolver movimentação de recursos oriundos de usuários pagadores sancionados por resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, na forma prevista na Lei nº 13.810/2019, e conforme disciplina própria editada pelo BCB; e (3) houver inconsistência entre a transação e os parâmetros atribuídos às transações com finalidade de saque ou de troco, inclusive no que se refere aos limites de valor estabelecidos pelo BCB em documento específico, à natureza jurídica do usuário recebedor e aos participantes que podem iniciar transações com essas finalidades [1].
Também em 2022, foi publicado o regulamento do Sistema de Pagamentos Instantâneos (SPI), a infraestrutura centralizada de liquidação bruta em tempo real de pagamentos instantâneos que resultam em transferências de fundos entre seus participantes titulares de Conta PI no BCB.
O Regulamento SPI estabelece que a participação é: (1) obrigatória, para os participantes do arranjo Pix, nos termos da regulamentação do arranjo, para fins de liquidação de pagamento instantâneo; (2) facultativa (2.1) para as câmaras e os prestadores de serviços de compensação e de liquidação, com o único objetivo de liquidar operações privadas de fornecimento de liquidez no âmbito do SPI realizadas entre os seus participantes e (2.2) para a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), com a finalidade exclusiva de realizar recolhimentos e pagamentos relativos às suas atividades típicas [2]. Além de observarem os passos para participação no SPI, as instituições devem seguir o processo de adesão Pix, também tratado em norma de 2022, que é composto pelas etapas (1) cadastral; (2) homologatória; e (3) de operação restrita [3].
Certamente uma das alterações normativas que mais gerou inquietação a agentes econômicos do mercado financeiro foi a que tratou do Banking-as-a-Service (BaaS), no âmbito do Pix. A norma estabeleceu que a iniciação e o recebimento de operações firmadas via Pix apenas podem ser realizados por participantes do Pix, que, portanto, submeteram-se aos procedimentos destacados na normas referidas acima. Ainda é lícita a prestação de serviços Pix via intermediação, entretanto, esta não poderá ocorrer via conta transacional de terceiro que não é participante do Pix ou por conta transacional fornecida pelo participante do Pix ao terceiro — o que, no cotidiano do mercado, entende-se pela união entre "conta bolsão" e "contas gráficas" [4].
Com vistas a refletir essa alteração, o Manual de Penalidades do Pix passou a prever a infração de "atribuir a terceiro não participante do Pix a realização das atividades de que trata o art. 90-A do Regulamento do Pix", punível com multa com valor-base de R$ 1 milhão [5].
Fechando o ano de 2022, em dezembro, o BCB retirou a obrigatoriedade de limite por transação do Pix, mantendo apenas o limite por período de tempo [6].
Open finance
O ecossistema do open finance pôde observar, em 2022, importante alteração normativa a respeito do encaminhamento de propostas de operações de crédito.
Estabeleceu-se, assim, que as instituições contratantes deverão disponibilizar interfaces dedicadas para compartilhamento de serviço de encaminhamento de proposta de operação de crédito, que contemplem, no mínimo: (1) o recebimento das solicitações de propostas de operação de crédito; (2) o recebimento e envio de dados entre a instituição financeira contratante e o correspondente no país; (3) o envio das propostas de operação de crédito; e (4) o rastreamento das solicitações e das respectivas propostas de operação de crédito.
A nova norma fez constar que é considerada instituição contratante, para os fins descritos em seu texto, a instituição financeira que mantenha contrato de correspondente no país que contemple a atividade de recepção e encaminhamento de propostas de operações de crédito e de arrendamento mercantil, por meio de plataforma eletrônica, nos termos da regulamentação de correspondente no país [6].
O BCB publicou ainda duas relevantes Resoluções Conjuntas. Uma delas, com o CMN, determinou a alteração, em todos os documentos normativos atinentes ao tema, do termo open banking para o termo open finance [8]. A outra, com a Superintendência de Seguros Privados (Susep), trata da interoperabilidade no ecossistema, classificando-a como o compartilhamento padronizado de dados, mediante consentimento de cliente, de forma segura, ágil e precisa, entre os participantes dos sistemas disciplinados pelos seguintes atos normativos: (1) Resolução Conjunta CMN-BC nº 01/2020; e (2) Resolução CNSP nº 415/2021 [9].
Mercado de câmbio
Com fundamento na Lei nº 14.296/2021 (Marco Legal de Câmbio), o BCB publicou, em 2022, norma que dispõe que são princípios norteadores do funcionamento regular do mercado de câmbio: (1) a competição para a prestação de serviços ao público relacionados às operações do mercado de câmbio; (2) o atendimento das necessidades do público, em especial liberdade de escolha, privacidade, transparência e acesso a informações claras e completas sobre as condições das operações do mercado de câmbio; (3) a eficiência das operações realizadas no mercado de câmbio; (4) o estímulo à inovação, considerando a legalidade das operações, e à diversidade de modelos de negócio; (5) a redução de custos de transação no mercado de câmbio; (6) a inclusão financeira; (7) a confiabilidade e a qualidade dos produtos e serviços ofertados no mercado de câmbio; e (8) a integridade, a conformidade, a segurança e o sigilo das operações de câmbio ou das movimentações de valores [10].
Outra alteração que representará importante impacto no mercado de câmbio, principalmente sob o prisma concorrencial, é a que determinou que as instituições de pagamento poderão operar no mercado de câmbio somente a partir de 1º de julho de 2023 [11].
Registro e gestão de recebíveis
No âmbito da regulação de recebíveis, é importante apontar norma que trata do uso proporcional ao risco de recebíveis constituídos e a constituir em garantia de operações de crédito [12]. O dispositivo direciona-se especificamente à gestão de risco em instituições financeiras que se valem desses recebíveis como garantia, possibilitando assim melhores condições aos tomadores de crédito.
Quanto às credenciadoras, nova norma facultou o bloqueio de valores referentes às transações por elas capturadas com o propósito de (1) constituição de reserva financeira para gerenciamento de risco de sua relação contratual com seus respectivos usuários finais recebedores; e (2) compensação de valores devidos pelo usuário final recebedor, tais como: (2.1) multas; (2.2) estornos decorrentes de cancelamentos, contestações ou fraudes, no âmbito de arranjo de pagamento, de transações já liquidadas; e (2.3) outras compensações decorrentes de eventos previstos contratualmente [13].
Além disso, quanto às entidades registradoras, houve, em 2022, alteração normativa que estabeleceu os princípios a serem observados na implementação dos mecanismos de interoperabilidade, a exemplo (1) da promoção da concorrência entre os sistemas de registro e entre seus participantes; (2) da eficiência e efetividade na troca de informações; (3) da padronização tecnológica e de regras de negócio que viabilizem o cumprimento das disposições regulamentares e que sirvam de base para a harmonização dos procedimentos operacionais e de intercâmbio de informações; e (4) da transparência, segurança, privacidade e sigilo das informações transmitidas entre os sistemas de registro [14].
Regulação prudencial de instituições de pagamento
A partir da edição de seu marco legal, a Lei nº 12.865/2013, as instituições de pagamento atingiram elevado grau de complexidade, de modo que a regulação prudencial até então aplicada a essas instituições se tornou inadequada. Ao longo dos quase dez anos de vigência da lei, as instituições de pagamento passaram a constituir instituições financeiras como subsidiárias ou fundos de investimento, e, consequentemente, passaram a incorrer em novos riscos, decorrentes da atuação expandida, especialmente o risco de crédito, mas, ainda, riscos de liquidez e de mercado.
Considerando isso, foram publicadas, em março de 2022, diversas normas com o objetivo central de aprimorar a regulamentação prudencial aplicável às instituições que realizam serviços de pagamento, unificando-se o tratamento dispensado (1) aos conglomerados prudenciais liderados por instituição de pagamento e integrados por ao menos uma instituição financeira, (2) às instituições financeiras que realizam atividades de pagamento e (3) aos conglomerados prudenciais liderados por instituições financeiras integrados por ao menos uma instituição de pagamento [15][16][17][18][19][20][21]. Ao final de 2022, a entrada em vigor dessas normas foi adiada para julho de 2023 [22].
Processos de autorização
A respeito dos processos de autorização, temos que duas alterações tiveram grande relevo quanto ao regramento das instiuições de pagamento.
Em primeiro lugar, é possível citar a possibilidade de que fundos de investimento figurem como detentores de participação qualificada no âmbito da instituições de pagamento, em linha com o regramento das sociedades de crédito direto e das sociedades de empréstimo entre pessoas (fintechs de crédito) [23].
Com ainda maior impacto no mercado, foi realizada alteração em uma das principais normas de regência das instituições de pagamento, para prever que as emissoras de moeda eletrônica que iniciaram sua prestação de serviços anteriormente a março de 2021, podem, caso não atingidos certos volumes de transações, submeter pedido de autorização com prazo final somente em 31 de março de 2029 [24].
Os processos de autorização de diversas instituições também foram alterados ou consolidados em 2022. Por isso, para fins didáticos, elaboramos o quadro abaixo, a fim de resumir alguns dos principais pontos dessas normas.
Aspectos conclusivos
Em 2022, a regulação bancária e de pagamentos adequou diversos aspectos relevantes para instituições reguladas e para os consumidores de serviços financeiros, tendo em vista a agenda institucional BC#. De modo geral, temos que a regulação emitida pelo CMN e pelo BCB tem se mostrado importante vetor de melhorias no âmbito do mercado financeiro.
[1] Nos termos da Resolução BCB n° 181, de 25 de janeiro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2022.
[2] Nos termos da Resolução BCB n° 181, de 25 de janeiro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de fevereiro de 2022.
[3] Nos termos da Instrução Normativa BCB n° 291, de 29 de julho de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de setembro de 2022.
[4] Nos termos da Resolução BCB nº 269, de 1º de dezembro de 2022. O trecho que destacamos entrará em vigor em 1º de março de 2023.
[5] Nos termos da Resolução BCB nº 270, de 1º de dezembro de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de março de 2023.
[6]Nos termos da Instrução Normativa BCB nº 331, de 1º de dezembro de 2022, que A norma entrará em vigor em 02 de janeiro de 2023 — com exceção de disposição que estabelece que os participantes provedores de conta transacional do Pix devem disponibilizar, para seus clientes pessoa física, funcionalidade para gestão de limites, que entrará em vigor em 03 de julho de 2023.
[7] Nos termos da Resolução BCB n° 206, de 22 de março de 2022. A norma entrou em vigor e, 22 de março de 2022.
[8] Nos termos da Resolução Conjunta CMN-BCB n° 04, de 24 de março de 2022. A norma entrou em vigor em 02 de maio de 2022.
[9] Nos termos da Resolução Conjunta BCB-Susep nº 05, de 20 de maio de 2022. A norma entrará em vigor no dia 02 de janeiro de 2023.
[10] Nos termos da Resolução CMN n° 5.042, de 25 de novembro de 2022. A norma entrará em vigor em 31 de dezembro de 2022.
[11]Nos termos da Resolução BCB n° 268, de 1º de dezembro de 2022. A norma entrou em vigor em 02 de dezembro de 2022.
[12]Nos termos da Resolução CMN nº 5.045, de 25 de novembro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de dezembro de 2022,
[13]Nos termos da Resolução BCB nº 264, de 25 de novembro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de dezembro de 2022.
[14] Nos termos da Resolução BCB nº 267, de 25 de novembro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de dezembro de 2022.
[15]Nos termos da Resolução BCB nº 197, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[16] Nos termos da Resolução BCB nº 198, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[17] Nos termos da Resolução BCB nº 200, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[18] Nos termos da Resolução BCB nº 198, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[19] Nos termos da Resolução BCB nº 199, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 11 de março de 2022.
[20] Nos termos da Resolução BCB nº 200, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[21] Nos termos da Resolução BCB nº 201, de 11 de março de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de julho de 2023.
[22] Nos termos da Resolução BCB nº 258, de 18 de novembro de 2022. A norma entrou em 1º de dezembro de 2022.
[23] Nos termos da Resolução BCB nº 205, de 22 de março de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de abril de 2022.
[24] Nos termos da Resolução BCB nº 257, de 16 de novembro de 2022. A norma entrou em vigor em 1º de dezembro de 2022
25 Nos termos da Resolução CMN nº 5.008, de 24 de março de 2022. A norma entrou em vigor em 02 de maio de 2022.
26 Nos termos da Resolução CMN nº 5.000, de 24 de março de 2022. A norma entrou em vigor em 02 de maio de 2022.
27 Nos termos da Resolução CMN nº 5.050, de 25 de novembro de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de janeiro de 2023.
28 Nos termos da Resolução CMN nº 5.047, de 25 de novembro de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de janeiro de 2023.
29 Nos termos da Resolução CMN nº 5.046, de 25 de novembro de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de janeiro de 2023.
30 Nos termos da Resolução CMN nº 5.051, de 25 de novembro de 2022. A norma entrará em vigor em 1º de janeiro de 2023.
Eduardo Bruzzi é sócio do BBL Advogados e head da área consultiva e contenciosa regulatória de Payments, Banking, Fintech & Cypto, mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio, visiting scholar pelo Institute for Law & Finance da Goethe-Universität de Frankfurt, membro da Comissão de Direito Público da OAB-RJ, professor da pós-graduação em Direito Regulatório da Uerj e autor e coordenador do livro Banking 4.0: Desafios jurídicos e regulatórios do novo paradigma bancário e de pagamentos.
Aylton Gonçalves é associado sênior da área consultiva regulatória de Payments, Banking, Fintech & Crypto do BBL Advogados, mestrando em Direito pelo IDP, professor da Escola Superior da Advocacia do DF (ESA-DF), membro das Comissões de Direito Bancário e de Direito Digital, Tecnologias Disruptivas e Startups da OAB-DF e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Regulação Econômica e Direito Regulatório do IDP (Gedir/IDP).