Revolução da inteligência artificial está chegando ao setor jurídico; quem a ignorar corre o risco de ser engolido
A tecnologia do momento é sem dúvidas a GPT-3, inteligência artificial por trás do cada vez mais famoso ChatGPT. Nas palavras da própria, o ChatGPT, desenvolvido pela OpenAI, é baseado em técnicas de aprendizado de máquina, tais como o processamento de linguagem natural (Natural Language Processing ou NLP) e modelo de linguagem de transformação de previsão.
Daí a sigla em inglês GPT (Generative Pretrained Transformer, em tradução livre Transformador Gerativo Pré-Treinado), ou seja, uma inteligência artificial de processamento de textos que usa a arquitetura “Transformer”, é “pré-treinada” e projetada para “gerar” textos. Isso significa, de forma bem simplificada, que o modelo é treinado antes de ser colocado em uso, utilizando grandes quantidades de texto e adquirindo a capacidade de prever os elementos adequados em uma determinada frase, com base nas palavras e no contexto processados. O fato de “compreender” o contexto se mostra verdadeiramente revolucionário, pois permite que a inteligência artificial responda perguntas e continue diálogos de forma natural.
Para usá-lo, basta realizar um cadastro rápido, abrir o chat, digitar uma pergunta e, voilá, o usuário receberá uma resposta detalhada. A pergunta pode estar relacionada a absolutamente qualquer coisa, inclusive a questões jurídicas. Isso mesmo. É possível realizar uma consulta jurídica por meio do software e obter uma resposta.
Antes de adentrarmos o mérito do grau de confiabilidade do ChatGPT, nos parece claro que a tecnologia possui um potencial tremendo de disrupção positiva no acesso à justiça, em sua espécie “acesso democratizado à informação jurídica”. O sistema jurídico deve ser, como ideal, de fácil navegação; a assimetria de informação jurídica é a maior antítese do ideal do acesso à justiça.
Da mesma forma que buscadores como o Google contribuíram para a melhora desse cenário, o ChatGPT poderá ter papel importante aqui, uma vez que, por “compreender” a linguagem natural, facilita a localização de informações mais complexas.
Veja-se abaixo um pequeno teste no qual a tecnologia dá uma aula de simplificação a respeito de um conceito jurídico que é, por vezes, nebuloso para a população em geral: a usucapião.
Pergunta do autor: Explique para uma criança como funciona usucapião.
Resposta do ChatGPT: Bem, imagine que você tem um brinquedo que você gosta muito e usa muito, mas não é seu. Se você continuar usando esse brinquedo por um tempo longo, sem ninguém reclamar, você pode acabar ficando com ele de verdade. Isso é o que chamamos de usucapião. É como se você tivesse pegado emprestado o brinquedo por tanto tempo que se tornou seu de verdade. É mais ou menos o mesmo com as coisas que as pessoas possuem, como casas ou terrenos. Se alguém estiver usando uma casa ou um terreno sem o dono reclamar por um tempo muito longo, essa pessoa pode acabar ficando com essa casa ou terreno.
Palmas para o robô! Um sistema de justiça eficiente não é só aquele que resolve, contém e evita disputas de forma efetiva, mas é também aquele que permite que seus destinatários finais, i.e., os jurisdicionados, entendam a lei e possam utilizá-la defensiva ou ofensivamente a seu favor. Há um curioso paradoxo narrado por Richard Susskind, onde um advogado vira-se para seu cliente e diz que gostaria que ele o houvesse consultado algumas semanas antes com o seu questionamento. O humor aqui está na impossibilidade de o cliente sequer saber que necessitaria do advogado quando do evento que o levou a procurar ajuda profissional. Em resumo, tradicionalmente, “você precisa ser um advogado para saber que precisa de um advogado”[1].
Não há dúvidas de que métodos adequados e online de resolução de conflitos são capazes de reduzir disputas e permitir, de forma escalável, que fatias da população excluídas do sistema de justiça revertam esse status quo. Contudo, o que uma ferramenta como o ChatGPT permite é que absolutamente qualquer cidadão com acesso à internet receba assistência jurídica básica e preliminar. Mais uma vez, se buscadores como o Google foram um primeiro passo nesse sentido, o ChatGPT certamente representa substancial avanço.
Mas nem tudo são flores. Na verdade, podem até ser, mas elas ainda não floresceram completamente. O primeiro sinal vermelho para o uso em larga escala do sistema é o fato de que seus bancos de dados estão atualizados somente até 2021. Portanto, perguntar sobre uma lei publicada em momento posterior a referida data necessariamente gerará uma resposta errada.
Pergunta do autor: O Brasil possui um marco regulatório para criptomoedas?
Resposta do ChatGPT: Não existe um marco regulatório específico para criptomoedas no Brasil. No entanto, as autoridades reguladoras, como o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), têm emitido orientações e instruções sobre o uso e a negociação de criptomoedas. Além disso, o Banco Central do Brasil tem emitido alertas sobre os riscos associados às criptomoedas e tem trabalhado para desenvolver regulamentações para estas moedas digitais.
Vê-se que a aplicação ignora a vigência da Lei 14.478/2022 (Marco Regulatório das Criptomoedas), embora faça menção aos movimentos normativos da CVM e do Banco Central em relação à criptoeconomia, tais como o Ofício-Circular CVM/SIN 1/2018 e a Circular BC 3.919/2019.
O segundo problema do sistema são as respostas efetivamente incorretas que ele poderá apresentar. Vejamos o exemplo abaixo, que reproduz uma pergunta relativamente corriqueira que advogados são obrigados a responder em seu dia a dia.
Pergunta do autor: Qual o prazo prescricional para uma ação de indenização por violação contratual?
Resposta do ChatGPT: O prazo prescricional para uma ação de indenização por violação contratual é de 5 anos, contados a partir do momento em que o direito à indenização se tornou exigível. Este é o prazo geral para ações de indenização no Brasil, no entanto, o prazo prescricional pode ser alterado em casos específicos de acordo com a lei ou a natureza do contrato. É importante notar que, em alguns casos, o prazo prescricional pode começar a contar a partir do término do contrato ou do cumprimento das obrigações contratuais, e não a partir da data da violação.
Nesse último caso, o sistema errou feio. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem feito uso dos prazos prescricionais previstos no Código Civil, conforme EREsp 1.281.594/SP que menciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual, advinda da distinção ontológica, estrutural e funcional entre ambas, que obsta o seu tratamento isonômico. Dessa forma, o STJ passou a entender que, nas controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual, aplica-se a regra geral prevista no art. 205, na ausência de outro prazo legal aplicável.
O referido artigo prevê dez anos de prazo prescricional e, nos casos de responsabilidade extracontratual, aplica-se o disposto no art. 206, § 3º, V do CC, que prevê o prazo de três anos. Caso advogado fosse, é certo que o ChatGPT poderia responder por negligência.
Isso desqualifica, portanto, o ChatGPT como uma poderosa ferramenta de democratização da informação jurídica? Depende. Por um lado, a falta de atualização após 2021 e a incerteza sobre a veracidade e acurácia das suas respostas impede a sua adoção, como um mecanismo de consultas jurídicas, de forma definitiva.
Por outro lado, é certo que a ferramenta evoluirá – e, aqui, é bom dizer que isto acontecerá muito, mas muito rápido. Mais ainda: seus resultados são impressionantes e, com uma curadoria adequada, podem trazer uma escala incrível para o trabalho de advogados que atendem pessoas físicas e defensores públicos.
Para os neoluditas de plantão, sugerimos que o ChatGPT seja encarado, por ora, como um estagiário. Amanhã, ele será um advogado júnior. Depois de amanhã, quem sabe, um Modesto Carvalhosa.
Mas isso não é uma questão para agora. Devemos pensar em como o seu estado da arte pode ser útil para promover o acesso à justiça e tornar mais eficiente a prestação de serviços jurídicos.
Por último, sobre a pergunta que é feita sempre que uma tecnologia nova surge, isto é, “os advogados serão substituídos?”, tem-se que admitir que não há como respondê-la agora.
Contudo, é bom lembrar que ferramentas simples, como o processo eletrônico e as audiências virtuais, já foram capazes de eliminar determinados postos jurídicos de estagiários, paralegais e correspondentes jurídicos, liberando a alocação dessa mão de obra em atividades mais importantes e aumentando a produtividade no geral.
No mais, sempre que tal discussão surge, é impossível não lembrar novamente de Richard Susskind: “não é trabalho dos doentes manter os médicos empregados”[2]. A revolução da inteligência artificial está chegando ao setor jurídico e aqueles que a ignorarem correrão o risco de serem engolidos pelo mar de mudanças que se aproxima. O operador do direito deverá surfar essa onda ou será engolido por ela.
[1] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. OUP: Oxford, 2019, p. 131.
[2] SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. OUP: Oxford, 2019, p. 49.
DANIEL BECKER – Sócio do BBL Advogados, diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), organizador dos livros "O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind", "O fim dos advogados? Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind - vol. II", "Regulação 4.0, vols. I e II", "Litigation 4.0" e "Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados", todos publicados pela Revista dos Tribunais.
PEDRO LAMEIRÃO – Sócio da área de Tributário. Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Pós-graduado em Direito Financeiro e Tributário pela UFF. Membro da Comissão Especial de Defesa do Contribuinte e Política Fiscal da OAB-RJ e da Comissão de Assuntos Legislativos da OAB-RJ. Professor na PUC-Rio (curso de extensão Tributação da Economia Digital) e na Faculdade CERS (pós-graduação em Direito Digital).