Para além das cláusulas usuais previstas em todo e qualquer contrato relativo a negócio jurídico praticado entre entes privados, pessoas ou sociedades empresariais, o propósito do presente artigo é, de maneira muito objetiva, inserir pontos de reflexão para determinadas cláusulas dispostas em contratos de compra e venda de energia praticados no ambiente de contratação livre.
Apenas para registrar, no ACL (ambiente de contratação livre de energia), os consumidores (que preenchem requisitos específicos para tanto) podem contratar e negociar as condições da compra de energia elétrica diretamente com as comercializadoras ou geradoras.
No "mercado livre de energia" existem dois "tipos" de consumidores: os especiais e os (realmente) livres. Os especiais, oriundos do Grupo A (como grandes empresas e indústrias), possuem demanda de energia a partir de 0,5 MW — o que representa uma conta de luz para mais de R$ 100 mil — e necessariamente precisam que a sua energia seja fornecida exclusivamente de fontes incentivadas (biomassa, eólica, solar e pequenas hidrelétricas).
Já os denominados consumidores livres, também do Grupo A, possuem demanda de energia igual ou superior a 1.5 MW. Estes, sim, podem receber sua energia de qualquer fonte, incentivada ou convencional (advinda de fontes fósseis).
Para pontuar — de maneira muito acertada e benéfica —, há uma tendência de abertura do mercado livre de energia. Em setembro de 2022, o Ministério de Minas e Energia (MME) publicou a Portaria Normativa nº 50, a qual passou a permitir, a partir de janeiro de 2024, a abertura do mercado livre de energia a todos os consumidores do Grupo A, sem distinção entre especiais e (realmente) livres.
Mas, isso é assunto para outra oportunidade e a questão ainda está sendo aprimorada e debatida pelo MME para, a partir de determinado ano — quem sabe 2026 ou 2028 — firmar-se a abertura do mercado livre a todos os consumidores.
Retomando o escopo do presente artigo, elencamos adiante alguns pontos de reflexão sobre determinadas cláusulas previstas no contrato de compra e venda de energia. A ideia é que, diante da disposição e utilização de "modelos" de contratos para negócios distintos, seja possível sopesar, entender e efetivamente negociar aquilo que está escrito, compreendendo suas consequências práticas para atingir de maneira satisfatória o interesse de ambas as partes.
1º ponto de atenção — o “objeto” do contrato: em modelos usualmente utilizados pelas comercializadoras de energia é comum encontrar que a energia adquirida poderá vir de fonte convencional ou incentivada. Chama-se à reflexão aqui se, de fato, você, adquirente, deseja obter a energia apenas de fonte "limpa", ou seja, incentivada, ou se eventualmente seria permitida a utilização de energia oriunda de fonte convencional. Muitas empresas desejam estampar o "selo" de "eu uso energia limpa". Porém, se o seu contrato de energia não estiver adequado apenas para uso de fonte incentivada, tal fato pode tornar-se inverídico.
2º ponto de atenção — a previsão de "sazonalização" da energia no contrato: alguns contratos de compra e venda de energia preveem a possibilidade de sazonalização da demanda. Ou seja, a "entrega" da energia poderá ser realizada de maneira diferente entre os meses do ano, chegando o mais próximo possível do efetivo uso da adquirente em cada período mensal. Por exemplo, se uma escola parte para o mercado livre de energia, deve-se sopesar o fato de que, nos meses de férias, por certo a demanda necessária será menor em comparação ao restante do ano. Verificado o histórico de consumo, é possível justamente "sazonalizar" a "entrega" da energia. É importante, portanto, que as partes reflitam a respeito de como poderá ocorrer e se é pertinente prever desde o início essa sazonalização, quais critérios deverão ser preenchidos ou se, em contrapartida, mais valeria promover apenas uma contratação flat. Nesta modalidade, a energia será distribuída de modo igualitário entre os meses do ano.
3º ponto de atenção — a previsão de flexibilização da energia no contrato: caso exista a hipótese de sazonalização do contrato, é necessário prever os percentuais de flexibilização mensal de distribuição de energia, ou seja, quanto poderá a respectiva entrega variar em cada mês. De maneira geral, os contratos preveem percentuais de 130% e de 70%, mantando-se a quantia anual de energia contratada. No entanto, como no exemplo da escola, é possível que seja necessário aumentar tal variabilidade mensal.
4º ponto de atenção — preço e tributos:é necessário deixar claro no contrato se o preço a ser pago pela quantidade de energia respectiva engloba, ou não, o valor do ICMS e a encargo de quem, se devido for, ficará o pagamento. Não são todos os Estados do Brasil que preveem o pagamento de ICMS — daí a importância de ambas as partes ficarem atentas à necessidade dessa previsão.
5º ponto de atenção — hipóteses de resolução, rescisão e resilição do contrato: todo negócio jurídico praticado poderá ser desfeito, seja por vontade unilateral de alguma das partes ou por decisão de ambas. Em contratos de energia, para além do básico, é preciso ficar atento aos seguintes critérios: por quanto tempo a contratação está sendo realizada? Se a minha empresa precisar de mais energia, vou poder adquirir de outra comercializadora? O preço é hipótese de rompimento do contrato sem ensejar multa?
É certo que existem diversas outras nuances no âmago de um contrato de compra e venda de energia a que as partes devem ficar atentas. O importante, aqui, é não descuidar do que está escrito, previsto e disposto nas respectivas cláusulas. Só se surpreende quem deixa de analisar as linhas do instrumento a ser celebrado entre as partes — e isso, obviamente, vale para todo e qualquer negócio jurídico.
A negociação prévia, a compreensão sobre os termos firmados entre os interessados visando à efetiva consecução de suas expectativas, para além de se consubstanciar em medida mínima à assinatura de qualquer contrato, é premissa para evitar conflitos futuros e desnecessários. E, como visto, a especificidade de um contrato cujo objeto envolve a comercialização de energia é ainda mais sensível quando comparado a outros negócios.
Dada a terminologia singular da área de Energia, compreender é mais que uma medida de precaução, é pressuposto básico à saudável continuidade do mercado.
Bianca Bez é doutoranda em Análise Econômica do Direito (UFSC), mestre em Análise Econômica do Direito (UFSC), professora de processo civil da graduação em Direito (Cesusc), presidente da Comissão de AED da OAB-SC e advogada com ênfase em resolução de disputas e Energia do BBL Advogados.