Por Daniel Becker, Aylton Gonçalves e Carolline Ribeiro
Desde 2016, com a valorização brusca do bitcoin, os criptoativos, entre altos e baixos, vêm ganhando um papel cada vez mais relevante no mercado global. Mas não é só. Há muito, a espécie deixou de ser compreendida como mero instrumento de nicho cyberpunk e se tornou parte relevante da vida financeira da sociedade civil. Atualmente, o Brasil está entre os cinco países com maior número de investidores em criptoativos, atrás somente da Índia, EUA, Rússia e Nigéria.
Para que se tenha ideia da dimensão do mercado nacional de criptoativos, segundo o último relatório da Receita Federal do Brasil, Criptoativos – Relatório de Dados Abertos e Informações Gerais, somente em setembro de 2022, 1.490.618 pessoas físicas e 14.255 pessoas jurídicas declararam possuir criptoativos e movimentaram aproximadamente R$ 11,3 bilhões Além disso, o volume total anual de transações em 2022 já ultrapassa o valor de R$ 148 bilhões, com recorte até o mês de setembro.
Recentemente, em novembro de 2022, diversos agentes econômicos foram surpreendidos pelo protocolo de pedido de falência, perante a Justiça estadunidense, formulada pela FTX, exchange que chegou a ser a segunda maior corretora de ativos virtuais do mercado global.
A fim facilitar a compreensão do leitor acerca da sequência de eventos que culminaram no pedido de falência da FTX, elaboramos a linha do tempo abaixo, em formato de quadro.
As notícias mais atuais sobre o caso FTX dão conta de que (1) a perda de fundos de clientes chegou a US$ 8 bilhões e (2) depois de ter sido preso em Bahamas, Sam Bankman-Fried, fundador e ex-CEO da FTX, foi extraditado para os EUA, para responder a acusações de fraude, lavagem de dinheiro e violação ao regramento eleitoral estadunidense quanto a financiamento de campanhas.
Casos semelhantes ao da FTX também chamaram atenção quanto à importância de regimes falimentares específicos para o mercado de criptoeconomia. Em 16 de fevereiro 2019, a QuadrigaCX, a maior exchange do Canadá na época, divulgou nota sobre o início de seu processo de falência, após a suposta morte de seu CEO, o que representou o desaparecimento de aproximadamente US$ 200 milhões. O caso QuadrigaCX, amplamente divulgado no documentário Netflix Não confie em ninguém: a caça ao rei da criptomoeda, recebeu novos contornos quando, em 19 de dezembro de 2022, cinco wallets vinculadas à exchange movimentaram 104 bitcoins (US$ 1,7 milhão).
Em meio à instabilidade no mercado de criptoativos causada pelo caso FTX, o PL nº 4.401/2021, conhecido como "Marco Legal dos Criptoativos", ganhou força e foi aprovado no dia 29.11.2022, em regime de urgência, pela Câmara dos Deputados, tornando-se, após sanção presidencial, a Lei nº 14.478/2022.
Apesar de sua indiscutível importância para o ambiente de negócios brasileiro, a Lei nº 14.478/2022, naturalmente, deixou alguns pontos relevantes em aberto. Um exemplo disso salta aos olhos se analisarmos o cenário peculiar da falência da FTX, o qual aponta à necessidade de regras específicas sobre o regime falimentar aplicável às prestadoras de serviços de ativos virtuais. Isso ganha ainda mais relevância se levarmos em conta a complexidade dos procedimentos envolvendo a custódia de chaves privadas.
É interessante notar que o tema de falências já foi abordado em projetos de lei sobre o setor da criptoeconomia. No âmbito do PL nº 3.949/2019, estabelecia-se que competiria ao Banco Central do Brasil “intervir nas exchanges e decretar sua liquidação extrajudicial na forma e condições previstas na legislação especial aplicável às instituições financeiras”. O PL nº 4.207/2020, por sua vez, previa que os ativos virtuais detidos por conta e ordem de terceiros deveriam "ser restituídos na hipótese de decretação de falência, na forma prevista no art. 85, da Lei nº 11.101, de 09 fevereiro de 2005". Ambos os projetos de lei foram considerados prejudicados, diante da aprovação da Lei nº 14.478/2022.
Passados esses pontos e, principalmente, considerando os cenários presente e futuro da regulação brasileira de criptoativos, questiona-se: qual regime falimentar deve ser aplicado às prestadoras de serviços de ativos virtuais?
Em primeiro lugar, é importante pontuar que, mesmo em face da pendência de regulação da atividade no Brasil, já é possível aplicar às sociedades prestadoras de serviços de ativos virtuais a norma falimentar de cunho geral, qual seja a Lei nº 11.101/05, principalmente no que toca aos arts. 94 e seguintes.
É verdade, no entanto, que as atividades envolvendo criptoativos, por suas peculiaridades, necessitam de normatização mais específica, tendo-se em vista, inclusive, a forte intersecção delas com o mercado financeiro. Por conta disso e da muito provável competência do Bacen para regular e supervisonar as prestadoras de serviços de ativos virtuais, é possível que essas sociedades sejam, para fins do conjunto normativo emitido pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central, instituições financeiras[1] ou instituições de pagamento [2].
Nesse caso, seriam aplicáveis às prestadoras de serviços de ativos virtuais os regimes de resolução de intervenção, liquidação extrajudicial e regime de administração especial temporária (RAET) [3], previstos respectivamente na Lei nº 6.204/74 e no Decreto-Lei nº 2.321/87. Os regimes de resolução objetivam restaurar o funcionamento normal da instituição ou interromper suas atividades e retirá-la, de forma ordenada, do Sistema Financeiro Nacional. Para facilitar a compreensão do leitor, confira-se as definições retiradas do site do Bacen:
a) A intervenção é adotada quando se vislumbra alguma possibilidade de recuperação. As atividades são suspensas temporariamente e pode durar até doze meses. Conforme o caso, a intervenção cessará se houver a retomada da normalidade ou, não havendo, pela decretação da liquidação extrajudicial ou da falência;
b) A liquidação extrajudicial é o regime de insolvência que se destina a interromper o funcionamento da instituição e promover sua retirada do Sistema Financeiro Nacional. É adotado quando a situação de insolvência é irrecuperável e a interrupção do funcionamento da instituição não compromete a estabilidade financeira.
c) O RAET não afeta as atividades normais da instituição. É a opção escolhida quando a instituição, em razão do seu porte ou complexidade operacional, desempenha funções críticas para a economia real ou a quando a paralisação abrupta do seu funcionamento possa causar riscos à estabilidade financeira. O RAET será encerrado se houver normalização da atividade ou solução de mercado para a instituição. Não havendo esta última, a União pode assumir o seu controle. Havendo possibilidade de adoção de medidas para preservação das funções críticas e da estabilidade financeira, o RAET poderá ser encerrado pela decretação da liquidação extrajudicial.
Ainda, é necessário se ter em vista que — pela dicção combinada dos arts. 39 e 40, da Lei nº 6.204/74, e do artigo 19 do Decreto-Lei nº 2.321/87 — haveria, nesse cenário, ao menos duas importantes mecânicas de responsabilização de prestadoras de serviços de ativos virtuais: (1) subjetivamente, com os requisitos do artigo 927 do Código Civil de 2002, para administradores, controladores [4], e membros de Conselho Fiscal, pelos atos que tiverem praticado ou omissões em que houverem incorrido, e (2) objetivamente, para os administradores e controladores, solidariamente quanto às obrigações assumidas pela instituição durante as suas gestões, independentemente do dolo ou culpa com o qual tenham contribuído ao prejuízo, bastando-se a comprovação do dano à instituição [5], em inquérito conduzido pelo Banco Central [6].
Conclusivamente, temos que eventuais falências de prestadoras de serviços de ativos virtuais brasileiras possuem, já neste momento, algum grau de previsibilidade, uma vez que passíveis dos procedimentos descritos na Lei nº 11.101/05. Contudo, a despeito disso, a futura normatização do Bacen, que possivelmente trará essas sociedades para o campo das instituições reguladas, certamente possibilitará ainda mais segurança a agentes econômicos integrantes do ecossistema da criptoeconomia, haja vista serem transferidos a essas sociedades os elementos que hoje asseguram a higidez do Sistema Financeiro Nacional e do Sistema de Pagamentos Brasileiro, tais quais os regimes especiais de resolução. O caso FTX nos mostra a criticidade do assunto e a impossibilidade de tratar temas novíssimos, com base em paradigmas jurídicos anteriores, formulados em contextos históricos e sistêmicos diversos.
[1] Nos termos do art. 17, da Lei nº 4.595/64, são instituições financeiras: "as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros".
[2]Nos termos do art. 6º, inciso II, da Lei nº 12.865/2013, é instituição de pagamento “pessoa jurídica que, aderindo a um ou mais arranjos de pagamento, tenha como atividade principal ou acessória, alternativa ou cumulativamente: a) disponibilizar serviço de aporte ou saque de recursos mantidos em conta de pagamento; b) executar ou facilitar a instrução de pagamento relacionada a determinado serviço de pagamento, inclusive transferência originada de ou destinada a conta de pagamento; c) gerir conta de pagamento; d) emitir instrumento de pagamento; e) credenciar a aceitação de instrumento de pagamento; f) executar remessa de fundos; g) converter moeda física ou escritural em moeda eletrônica, ou vice-versa, credenciar a aceitação ou gerir o uso de moeda eletrônica; e h) outras atividades relacionadas à prestação de serviço de pagamento, designadas pelo Banco Central do Brasil”;
[3]Tal hipótese encontraria sustentação no art. 1º da Lei nº 6.024/76, no art. 1º do Decreto-lei nº 2.321/87 (instituições financeiras), e no art. 13 da Lei nº 12.865/2013 (instituições de pagamento).
[4] São também responsáveis nos três regimes de resolução, solidariamente, na forma do art. 40 da Lei nº 6.024/74, as pessoas naturais ou jurídicas que mantenham vínculo de controle com a instituição financeira (ar. 15 do Decreto-lei nº 2.321/87, estendido para a intervenção e liquidação extrajudiciais pelo art. 1º da Lei nº 9.447/97). Nos termos do art. 15, §1º, do Decreto-lei nº 2.321/87, "Há vínculo de controle quando, alternativa ou cumulativamente, a instituição e as pessoas jurídicas mencionadas neste artigo estão sob controle comum; quando sejam, entre si, controladoras ou controladas, ou quando qualquer delas, diretamente ou através de sociedades por ela controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores da instituição".
[5] Como ensina Eduardo Salomão Neto: "os prejuízos que devem ser levados em conta são aqueles causados à própria instituição, e não simplesmente os causados aos credores. Isto porque como veremos quem persegue a responsabilidade nos termos do artigo 46 da Lei nº 6.024/74 é o Ministério Público ou terceiros interessados, sempre como representantes processuais da instituição. A questão é relevante porque credores quirografários de uma sociedade que já tivesse patrimônio líquido negativo e muitos credores privilegiados poderiam não ser em nada prejudicados por nova gestão que imediatamente antes da quebra aprofundasse os prejuízos já anteriormente existentes. Isso porque, claro, já antes da gestão nada teriam a receber. Por outro lado, a instituição é sempre prejudicada por prejuízos que sofra, o que aumenta o nível de responsabilidade dos indigitados pela lei". Salomão Neto, Eduardo. Direito bancário. 3ª ed. rev. e ampl. – São Paulo: Trevisan Editora, 2020. p. 763.
[6]Conforme se extrai dos arts. 45 e 46, da Lei nº 6.024/76, a responsabilidade de administradores e controladores é apurada em relação aos prejuízos sofridos pela instituição financeira em inquérito conduzido pelo Banco Central do Brasil.
Daniel Becker é sócio do BBL Advogados, diretor de novas tecnologias no Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), membro das Comissões de Assuntos Legislativos e 5G da OAB-RJ, advogado de resolução de disputas com foco em litígios contratuais oriundos de setores regulados, professor convidado de diversas instituições, palestrante frequente e autor de diversos artigos publicados em livros e revistas nacionais e internacionais sobre os temas de arbitragem, processo civil, regulação e tecnologia, organizador dos livros O Advogado do Amanhã: Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind, O fim dos advogados? Estudos em Homenagem ao professor Richard Susskind, vol. II, Regulação 4.0, vol. I e II, Litigation 4.0 e Comentários à Lei Geral de Proteção de Dados, todos publicados pela Revista dos Tribunais.
Aylton Gonçalves é associado sênior da área consultiva regulatória de payments, banking, fintech & crypto do BBL Advogados, mestrando em Direito pelo IDP, professor da Escola Superior da Advocacia do DF (ESA-DF), membro das Comissões de Direito Bancário e de Direito Digital, Tecnologias Disruptivas e Startups da OAB-DF, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Regulação Econômica e Direito Regulatório do IDP (Gedir/IDP).
Carolline Ribeiro é associada da área de resolução de disputas do BBL Advogados, bacharel em Direito pela Faculdade Nacional de Direito/UFRJ, pós-graduanda em Direito Empresarial pela PUC-RS, advogada especializada em contencioso estratégico, com atuação destacada nos ramos de energia, siderurgia, educação e tecnologia.
Consultor Jurídico